Um homem entra em um bar

O balcão do bar estava vazio quando ele entrou e se sentou num dos bancos. Eu tinha acabado de limpar o balcão. Não pude deixar de notar quando ele sentou; usava um chapéu country, botas de couro que pareciam novinhas, e cinto combinando; coisa de quem está acostumado a uma vida boa. Um instante antes ouvi uma pickup estacionando, e apesar de não ter visto o tipo, pelo som do motor sabia dizer que devia ser um veículo não muito barato.

Ele entrou e foi direto ao balcão, mas não rápido. Foi devagar, olhou primeiro ao redor para conferir se o bar estava muito cheio (não estava). Sentou-se num dos bancos do balcão e ficou por um tempo olhando ao longe, cotovelos apoiados no balcão, mãos nervosas se apertando. Não perguntei se queria alguma coisa. Durante todo o meu tempo aqui já vi muitos com o mesmo olhar, deixei ele ficar com seus pensamentos por um tempo e fazer o pedido quando estivesse pronto. Era a primeira vez que ele estava ali.

Arrumei algumas coisas no balcão enquanto isso. Um pouco antes dele chegar um grupo havia saído do bar; nesse momento havia só três mesas ocupadas, uma com um grupo que parecia ser de colegas de trabalho aproveitando um happy hour prolongado, duas outras com dois amigos cada, e mais um homem sozinho sentado quase na outra ponta do balcão, perto da televisão, um velho conhecido meu. A mesa de sinuca estava desocupada; noite sem muito movimento.

O recém chegado pediu um chope depois de um tempo. Servi-o colocando a caneca gelada e cheia em cima de um descanso de copo no balcão. Ele ficou um tempo olhando para a caneca antes fazer alguma coisa. Soltou as mãos, colocou o chapéu no balcão ao seu lado, pegou a caneca e deu apenas um gole. Para mim ele tinha todo o jeito de quem não está acostumado a beber muito mas estava querendo mudar isso.

Deixei ele à vontade. Meu antigo conhecido, que estava quieto no canto distante do balcão até esse momento, devagar se levantou, pousou seu copo no balcão perto do cowboy, e sentou-se ao lado dele em silêncio. O novato deve ter percebido a chegada dele mas não reagiu; só tomou mais um gole e descansou a caneca de vidro, mão firme segurando, a linguagem corporal indicando que mantinha uma barreira para o outro. Eu observei em silêncio.

— Noite difícil? — perguntou o meu conhecido que havia sentado. O cowboy ignorou a pergunta.

Eu já sabia que era melhor deixar ele quieto. Era um dos tipos de cliente que eu reconhecia fácil, ele não foi ali para conversar, e se foi ele ainda não sabe disso. Mas meu amigo era um pouco mais insistente.

— Você veio ao lugar certo, esse bar tem o melhor chope da cidade — disse enquanto tomava um gole. O novato continuou ignorando.

Fiz um sinal com os olhos para meu amigo; deixe o novato quieto. Ele fez um movimento com a mão e expressão no rosto como se dissesse “mas eu não estou fazendo nada!”. Eu e ele nos conhecemos há muito tempo, só pisquei os olhos devagar insistindo. Ele entendeu a dica e se levantou em silêncio, foi sentar novamente na outra ponta do balcão, bebendo sozinho e olhando quieto para a televisão que estava com volume bem baixo.

O novato precisava ficar um pouco de tempo sozinho, então dei tempo. Na mesa cheia fizeram sinal para mim, ouvi o pedido deles de longe, fui lá e troquei os copos, levei mais tiragostos. Voltei para o balcão e fui colocando os copos usados na pia. Bar bem quieto, exceto pelo grupo que conversava animadamente. Deixei o cowboy em paz, apenas olhando de vez em quando para ver se precisava de mais alguma coisa. Mal tinha bebido o chope. Fez um sinal para mim, me perguntou se tinha algum tiragosto, coloquei algumas vasilhas no balcão a frente dele.

Meu amigo na outra ponta do balcão fez sinal, fui lá encher o copo dele. Voltei, o novato estava novamente com os cotovelos apoiados, mãos juntas, ocupado com seus pensamentos. Mais alguns minutos se passaram e achei que já podia arriscar uma conversa. — O tiragosto está bom?

Ele me olhou e fez que sim com a cabeça, e voltou a ficar pensativo.

Deixei o tempo passar. Nem todo mundo responde da mesma maneira, cada um tem seu próprio tempo.

Tinha ido atender uma das mesas com dois amigos conversando e tinha voltado. Nisso o cowboy resolveu puxar conversa: — o chope daqui é bom mesmo.

— É o melhor da cidade — respondi com um sorriso e não insisti.

— Eu não sou daqui — respondeu o novato. Parecia querer um pouco de conversa, afinal.

— Você é meio familiar, mas não sei dizer de onde.

— Muita gente me conhece — respondeu me olhando nos olhos; parecia esperar que eu o reconhecesse.

Vi que uma das vasilhas de tiragosto já estava esvaziando, perguntei se queria mais; como respondeu que sim fui tratar de encher a vasilha. A caneca de chope mal estava no meio.

— Eu sou da cidade vizinha.

— Bom, eu passo lá de vez em quando. Mas bem pouco. De repente vi você por lá.

— Eu sou filho do fazendeiro mais rico de lá — disse o novato, novamente me olhando nos olhos por um instante, depois abaixou o olhar e tomou mais um gole.

— Ah… eu acho que sei quem você é — respondi para ser educado. O pai dele era bem conhecido na região inteira, a região tinha algumas poucas cidades cercadas de grandes fazendas.

Depois de mais um tempo ele disse: — você sabe da história do meu irmão, né?

— A gente ouve muita história por aí, ainda mais quem trabalha em bar. Mas eu evito ficar entrando na vida dos outros. — continuei me mantendo educado. Tenho certeza de que falar com ele desta forma, sem tentar me intrometer e deixando seu espaço pessoal, era a melhor abordagem para conversar com ele.

O cowboy ficou mais um minuto quieto; depois terminou rápido o chope, e empurrou a caneca para mim. Enchi novamente e entreguei da mesma forma, no descanso de copo. Agora ele parecia estar com vontade de falar.

Olhou para o bar em volta por um instante; estavam todos cada um cuidando de si mesmos, incluindo meu amigo que continuava bebendo devagar e quieto, na outra ponta do balcão, acompanhando a televisão. Quando o novato olhou para a outra ponta do balcão, parou por um instante, como se quisesse ter certeza de que não ia ser interrompido de novo; então eu disse: — Eu peço desculpa pelo Maldo.

Olhou para mim e eu apontei meu amigo: — Ele vem aqui no bar todo dia, e tenta puxar conversa com todo mundo.

— Não tem problema — respondeu e voltou a esfregar as mãos; então disse: — acho que muita gente vem para os bares, no fundo, porque quer conversar.

Eu vi que ele estava pronto, mas ainda assim não insisti. Continuei deixando ele à vontade.

Até que disse: — então, aqui na sua cidade já estão falando do meu irmão?

— Eu não sei dizer, sério. Mas o Maldo é o cara que tá sempre por dentro das conversas. Se for coisa nova eu acabo só sabendo depois, ou então se conversarem alguma coisa direto aqui no balcão.

Ele fez um sorrisinho sarcástico. — Bom, eu acho que logo logo você vai ouvir essa história.

E continuou: — você sabe quem é meu pai. Um dos maiores fazendeiros por aqui. Eu tenho um irmão mais novo que sempre foi o difícil da família.

Tomou mais um gole e continuou: — bom, teve um dia que meu irmão resolveu que queria a parte dele da herança logo. Não queria nem esperar que o velho morresse, entende? Ele falou com meu pai que queria receber a parte dele logo e ir viver a vida como queria. Você já viu um filho falar uma coisa dessas para o pai?

Eu balancei a cabeça devagar e disse: — Olha, já vi umas brigas de pai e filho feias. Mas essa é nova.

— Não teve briga. Meu pai deu o que ele pediu. — agora a história inteira estava vindo de uma vez só; fiquei quieto apenas olhando para ele, que foi falando uma frase atrás da outra. O que tava preso ali precisava sair.

— Imagine isso! Esse filho dele tem o topete de pedir isso, e meu pai faz o que? Junta o dinheiro todo que iria de herança pra ele, e entrega! — ele tava meio nervoso nessa parte; depois de falar olhou de novo ao redor pra ver se alguém tava olhando, porque tinha levantado a voz. Ninguém ligou; nem Maldo, que continuava olhando a televisão.

Continuou a história com a voz mais baixa. — Isso já tem um tempo. O idiota do meu irmão torrou o dinheiro todo. Foi pra outro estado, viveu feito um porco, gastou tudo com farra e prostitutas, e sabe Deus mais o quê.

— Aí o dinheiro acabou, e ele faz o que? Vem correndo com o rabo entre as pernas ver meu pai. Veio todo arrependido, com uma conversa de que não merecia mais ser filho dele, que queria só ser empregado, e tal. Fala sério pra mim, o que você faria com um filho desses?

Eu tinha sentado do meu lado do balcão para ouvir a história dele com atenção. — Bom, eu nem filho tenho.

Ele deu uma risada de deboche, continuou bebendo e contando a história. — Bom, meu pai recebeu ele de braços abertos. Com uma festa! Lá em casa estão dando a maior festa porque meu irmãozinho voltou. Chorando feito um cachorro arrependido. Meu pai mandou os peões fazerem o maior churrasco do ano pra receber esse… verme!

Terminou a caneca de novo e estendeu pra mim. Enchi com mais chope, coloquei no balcão, e sentei de novo.

— Agora, olha pra mim. Eu era o filho certinho. Sempre fiz tudo que meu pai mandava. Sabe a fazenda? Ele tá ficando velho demais pra cuidar de tudo, e eu fui tomando conta. Hoje em dia praticamente o dono sou eu, que faço tudo. Mas mesmo assim fui respeitando meu pai, nunca fiz nada sem falar com ele antes. E o que eu ganho com isso?

Esperei ele mesmo responder.

— NADA! Nem respeito! Só o trabalho de sempre. Vem esse outro filho dele que viveu na gandaia e torrou metade do patrimônio, e agora é recebido com festa!

A caneca de chope cheio ficou do jeito que estava, o vidro suando em cima do descanso. Silêncio no balcão. O bar voltou a ficar quieto, só o barulho leve das conversas distantes das mesas.

Meu novo conhecido agora olhava para o balcão, com uma raiva silenciosa corroendo ele por dentro. Dei um tempo e resolvi que ele precisava ouvir alguma coisa.

— Olha, você quer saber o que eu acho?

Ele balançou a cabeça devagar, então disse sem tirar os olhos do balcão: — Me diga. Porque eu já não sei o que pensar.

Ele estava pronto.

— Você tem filhos?

— Tenho três.

— Jóia. Então você é um pai de família. Do mesmo jeito que seu pai.

Ele se ajeitou um pouco mais na cadeira para ouvir melhor.

— Você trabalha duro e tenta fazer tudo certo. Pra sua família e pra seus filhos. Tô certo ou tô errado?

— Tá certo.

— Então. Olha, eu não tive pai, então não vou dizer que sei como é. Mas quem me criou me ensinou muita coisa, e depois de um tempo teve algumas coisas que eu não concordava.

Continuei: — Não vou dizer pra você brigar com seu pai. Ele é seu pai. Mas você não é nenhum menino, você é um homem feito e um pai também. Então pense que sua opinião também vale.

Ele tava quieto, me ouvindo.

— Esse seu irmão mais novo, seu pai desculpou ele. Mas ele é pai, né? Vamos entender isso. Mas você, você conhece seu irmão desde pequeno. Me diz se você acha que ele tá arrependido mesmo?

O olhar dele foi um pouco pra longe. — Disso eu não sei dizer com certeza.

Esse é um momento difícil pra qualquer um; decidir coisas que vão impactar uma família pelo resto da vida. Pesar na balança caráter e atitudes.

— Você não receberia seu irmão mais novo com festa, né?

Ele só me olhou, sério.

— Você falou isso com seu pai?

— Eu tive uma conversa séria com ele. Antes de sair. Daí eu saí de casa dirigindo, e vim pra cá. Pra meu pai ele tava perdido e foi encontrado, então é caso de fazer uma baita festa porque ganhou o filho de volta.

Dei um tempinho antes de continuar.

— Pra você ele não tá mudado, certo?

— Quem me garante? — respondeu ele muito sério. Quase com uma chama nos olhos.

— Então. Veja só… — fui pisando devagar aqui. — Como eu disse, não tive pai. Mas quem me criou, esse me ensinou muita coisa. E depois de grande eu vi que não concordava. Um homem adulto precisa fazer tudo que o pai manda?

Ele ficou em silêncio.

— Não tô dizendo pra você brigar com seu pai. Ele é seu pai, e vai continuar sendo. Seu irmão, a mesma coisa. Mas…

Ele tava me ouvindo mas os olhos estavam em outro lugar; ficava indo entre essa conversa e outro pensamento.

— Mas, e se você tiver certo? Você é homem de família e faz por merecer. Vai sair desculpando assim de qualquer jeito?

O pensamento dele voltou mais para a conversa. Ótimo.

— Quem garante? Olha, deixa seu irmão perto. É família, sabe como é. Mas não dá muita corda pra ele, não. Fica de olho.

Voltou a segurar a asa da caneca. Pensamento girando.

— Não fique desse jeito com seu pai. Ele é pai, imagina o lado dele. É claro que ele vai passar a mão na cabeça do filho mais novo, né não? — ele fez uma expressão de desprezo e balançou a cabeça de leve, ainda olhando para a caneca.

— Deixa seu pai fazer o lado dele. Você é um homem, faz o que você sabe. Se seu pai não entende você hoje, pode ser que amanhã ele veja seu lado e lhe dê razão. Quem dos filhos dele é o mais adulto?

Ele pareceu gostar da ideia.

— No mais, como você disse, você já é o homem da casa mesmo. Deixa seu pai ter o respeito dele, mas você faz o que precisa ser feito.

Parei por aí. Achei que ele já tinha o suficiente em que pensar. Por uma boa meia hora ele foi remoendo as ideias; foi bebendo o chope devagar. O pessoal que ocupava uma das mesas foi saindo, fechei a conta deles. Quando voltei para o mesmo lugar do balcão meu novo amigo já tinha terminado o chope; perguntei se queria mais, ele fez que não.

Então me encostei no balcão e fui enxugando uns copos que tinham sido lavados na pia.

— Olha, me desculpe ir me metendo na sua vida.

— Não, não. Você não falou nada de mais.

Colocou um dinheiro em cima do balcão, o suficiente para pagar a conta dele e mais um pouquinho. Levantou, colocou novamente o chapéu.

— Alguém tem que fazer o trabalho de homem da casa.

Me agradeceu e disse que qualquer hora dessas voltava. Então saiu.

Continuei limpando os copos. Maldo levantou da outra ponta do balcão, onde estava, e veio sentar perto de mim.

— Figura, né? — falou, bebendo um gole devagar.

— Você conhece esses tipos. Às vezes já têm a ideia do que fazer, só precisam de um toque.

— Conhece o irmão dele?

— Ele falou dele, mas nunca o vi. E você?

— Ah, eu conheço — abriu um sorriso. — Viveu em mais de um estado. Dava umas festas de arromba.

Fiquei arrumando os copos, enxugando o último.

— E aí, ele volta?

— Muito possível. Mas se não voltar, ele já tá com o pensamento certo. Às vezes, Maldo, é mais uma questão de esperar o momento certo.

— Bom, disso você entende bem. — fez um gesto de brinde para mim e tomou mais um gole.

— Ele já tava praticamente pronto. Um pouco de orgulho; um pouco de vaidade. Mas o ingrediente certo mesmo, aqui, foi a justiça própria. Eu adoro essa parte. Poucas coisas são tão poderosas quanto a certeza de que você está mais certo. E a melhor parte, eles têm tanta facilidade de enxergar isso nos outros, mas dificilmente vão notar isso neles mesmos.

Ficamos um tempo em silêncio, Maldo terminando seu drinque, eu terminei de arrumar o balcão. As duas mesas ainda ocupadas parece que ainda iriam ficar mais um tempo.

— E se ele acabar seguindo o mesmo sentimento do pai? — perguntou Maldo.

— Ah, isso sempre pode acontecer. Mas do jeito que ele está acho muito difícil que tenha um olhar desses para o irmão.

— Sim, mas o pai dele é um homem de convicções bem fortes; é assim há muito tempo. E se o filho mais velho acabar seguindo o caminho do pai e perdoar o mais novo?

— Então, meu amigo, nós começamos de novo. Dessa vez com o orgulho e a vaidade. Não se preocupe, ainda tem material ali pra ser trabalhado.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *